De Eduardo Ribeiro a Nestor Nascimento, a presença negra que moldou o Amazonas
No Dia da Consciência Negra, o Valor Amazônico revisita trajetórias de lideranças que inscreveram a luta antirracista na política, na cidade, na fé e nas periferias do estado – de Eduardo Ribeiro a Irmã Helena, de Nestor Nascimento a Nonata Corrêa.
Por Dora Tupinambá (*)
A história do Amazonas também é uma história negra — ainda que, por muito tempo, tenha sido empurrada para as margens dos livros oficiais, dos monumentos e das narrativas dominantes. Neste 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, olhar para essas trajetórias é mais do que um exercício de memória: é um ato político, cultural e ancestral de reconhecimento.
Apesar de toda a invisibilização histórica, a presença negra sempre esteve nas decisões, nas construções, nas lutas e nas resistências que moldaram Manaus e o interior do estado. Nos bairros, nos terreiros, nas escolas, nas praças, nas comunidades ribeirinhas e até mesmo nos espaços de poder, homens e mulheres negras deixaram marcas profundas — algumas delas, hoje, começam a ser retomadas com a força e o respeito que merecem.
Este texto também nasce de memória vivida. Como jornalista amazônida, cruzei o caminho de algumas dessas lideranças ainda quando iniciava minha militância estudantil e dava os primeiros passos na universidade. Mais tarde, acompanhei outras em meu próprio ofício, registrando lutas, resistências, conquistas e dores que ajudaram a desenhar não apenas a cidade, mas a minha própria compreensão de mundo.
A seguir, o Valor Amazônico resgata parte dessas histórias, trazendo quatro nomes fundamentais para entender o passado, o presente e o futuro da Amazônia: Eduardo Ribeiro, Nestor Nascimento, Nonata Corrêa e Irmã Helena.
Eduardo Ribeiro e a construção simbólica de uma capital
Eduardo Gonçalves Ribeiro foi um dos personagens mais marcantes da história política do Amazonas — e, durante muito tempo, pouco se falou sobre sua identidade racial. Negro, maranhense de nascimento e amazonense por escolha e legado, governou o estado no final do século XIX, tornando-se o primeiro governador negro do Amazonas e um dos primeiros do Brasil.
Sob sua gestão, Manaus passou por uma transformação profunda. A cidade ganhou obras que até hoje compõem seu imaginário urbano: o Teatro Amazonas, o Palácio da Justiça, o Reservatório do Mocó, a Ponte Benjamin Constant, entre outros equipamentos que consolidaram a capital como um centro urbano e cultural de destaque na Amazônia durante o ciclo da borracha.

Esse período coincidiu também com uma significativa migração de pessoas negras vindas do Maranhão — especialmente de cidades como Alcântara — atraídas pelo ciclo da borracha e pelas grandes obras de infraestrutura em andamento. Muitos desses homens e mulheres se estabeleceram em áreas próximas ao Centro, principalmente na região onde hoje está o bairro Praça 14 de Janeiro, formando comunidades estruturadas em torno da fé, da cultura e da resistência.
Dessa presença negra nasceu o que hoje é oficialmente reconhecido como o Quilombo do Barranco de São Benedito, considerado o primeiro quilombo urbano de Manaus — território de preservação da identidade, da espiritualidade e das tradições afro-brasileiras, que resistiu mesmo diante dos inúmeros apagamentos históricos.
Mais do que arquitetura, Eduardo Ribeiro ajudou a moldar a base institucional do estado, participando da elaboração da primeira Constituição republicana do Amazonas, inspirada em ideais modernos de cidadania, educação pública e organização administrativa. Seu nome, gravado em monumentos e numa das principais avenidas do Centro de Manaus, é o símbolo material de uma verdade que precisa ser constantemente reafirmada: um homem negro ocupou o lugar mais alto do poder no Amazonas e foi responsável por parte decisiva do seu projeto de modernidade.
Nestor Nascimento e a resistência negra nas ruas e na política
Foi na minha chegada à Universidade Federal do Amazonas que conheci Nestor Nascimento. Naquele momento de início de militância estudantil e busca por consciência política, ele já era uma liderança consolidada, respeitada e admirada em Manaus. Uma referência intelectual, humana e combativa.
Nascido no bairro Praça 14 de Janeiro — território historicamente negro —, Nestor foi advogado, jornalista, militante e uma das vozes mais firmes contra o racismo estrutural no estado. Sua trajetória foi marcada pela coragem: quando atuava no movimento estudantil, foi preso e brutalmente torturado pela ditadura militar. Sobreviveu. E, em vez do silêncio, escolheu a luta.

De volta a Manaus, fez do próprio corpo e da própria história um instrumento de denúncia, memória e resistência. Fundou organizações, participou de associações comunitárias, ajudou a fortalecer projetos culturais e esteve diretamente envolvido em iniciativas voltadas à valorização da identidade negra amazônica.
Seu nome hoje batiza uma praça no seu bairro de origem e inspira a Medalha Nestor Nascimento, concedida àqueles que atuam na defesa da igualdade racial no Amazonas.
Nestor me ensinou — mesmo sem saber — que a luta pela dignidade não se faz apenas nos discursos: ela se constrói com presença, memória e coragem cotidiana.
Nonata Corrêa e a força da ancestralidade viva
Também cruzei o caminho de Nonata Corrêa em um momento muito particular da minha trajetória: a busca pelo conhecimento da vida, da identidade, da ancestralidade e da cultura negra na Amazônia. Mãe Nonata não era apenas uma liderança religiosa. Ela era uma mulher de fundamentos, de sabedoria profunda, de memória viva dos seus ancestrais.
Sua linhagem, aliás, sempre me impressionou. Vinda de uma família que produziu intelectuais e pensadoras, como a professora doutora Marilene Corrêa, Nonata representava a união entre espiritualidade e produção de conhecimento.

Como Iyálorisá, construiu em Manaus um espaço de acolhimento, fé, proteção e resistência. Seus terreiros eram mais do que templos: eram territórios de cuidado, orientação e fortalecimento para mulheres, jovens, famílias inteiras — especialmente em tempos de crise, como durante a pandemia.
Ela também foi uma das grandes vozes na luta contra a intolerância religiosa, o racismo e a violência contra mulheres negras, além de atuante em movimentos sociais e na articulação de povos de matriz africana na Amazônia.
Nonata não deixou apenas saudade. Deixou consciência, autoestima, organização e identidade fortalecida em todos que tiveram o privilégio de cruzar seu caminho.
Irmã Helena, a semeadora de bairros na minha memória jornalística
Com Irmã Helena, minha vivência foi outra, mas não menos marcante. Eu a acompanhei já nos meus primeiros passos como jornalista, registrando suas lutas pela moradia, sua entrega absoluta ao povo e sua coragem inabalável diante das injustiças sociais.
Descendente de caribenhos que vieram trabalhar na Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, ela fez de Manaus o seu chão de missão. Nas décadas de 1970 e 1980, liderou ocupações e movimentos populares que deram origem a diversos bairros da Zona Leste, como Zumbi dos Palmares, Terra Nova, São José, Armando Mendes e, sobretudo, o bairro Novo Israel, uma de suas lutas mais emblemáticas e simbólicas.

Enfrentou ameaças, perseguições e tentativas de silenciamento — mas nunca recuou. Ela escolheu ficar. Escolheu lutar. Escolheu semear casas onde hoje existem histórias, famílias e comunidades inteiras.
Hoje, seu nome está em escolas e espaços públicos, mas sua verdadeira herança está nas milhares de pessoas que puderam construir uma vida digna graças à sua coragem.
Consciência negra é consciência de território
Revisitar essas trajetórias no Dia da Consciência Negra não é apenas um gesto simbólico. É a reafirmação de que não há futuro para o Amazonas sem reconhecer a participação negra em sua formação, sua cultura, sua política e sua espiritualidade.
Num estado marcado pelo apagamento, valorizar essas mulheres e homens é também resgatar o direito à memória, ao pertencimento e à narrativa própria. É reconhecer que a Amazônia é indígena, ribeirinha, cabocla — e, sim, profundamente negra.
E enquanto novas gerações ocupam universidades, movimentos sociais, espaços culturais e iniciativas sustentáveis, as histórias de Eduardo Ribeiro, Nestor Nascimento, Nonata Corrêa e Irmã Helena seguem como bússolas vivas.
Elas nos lembram que resistir é ancestral — e transformar é um ato coletivo.
(*) Jornalista Amazônida, fundadora do Portal Valor Amazônico


