ECONOMIAREGIÃO AMAZÔNICA

Potássio de Autazes expõe dilema da Amazônia entre produção agrícola e direitos dos povos originários

Projeto bilionário enfrenta impasse jurídico e social enquanto país busca autossuficiência em fertilizantes

O avanço do licenciamento da mina de potássio em Autazes, município distante 113 quilômetros de Manaus, reacendeu um dos principais debates da atualidade amazônica: o equilíbrio entre crescimento econômico, preservação ambiental e garantia dos direitos dos povos indígenas. Orçado em R$ 1,2 bilhão, o empreendimento é apresentado como peça estratégica para reduzir a dependência brasileira na importação de fertilizantes — um dos principais insumos do agronegócio.

Dados oficiais indicam que o Brasil importa cerca de 85% do potássio que consome, ocupando a terceira posição mundial no ranking de importadores. Somente em 2023, segundo a Associação Nacional para Difusão de Adubos (ANDA), o país destinou mais de US$ 13 bilhões para aquisição de fertilizantes, sobretudo da Rússia, Canadá e Belarus. A aposta em Autazes seria a principal rota para alterar esse cenário e contribuir para a meta estabelecida no Plano Nacional de Fertilizantes (PNF), que prevê elevar a autossuficiência brasileira de 15% para 40% até 2050.

Promessas

O projeto prevê a produção de até 2,2 milhões de toneladas anuais de cloreto de potássio, quantidade capaz de abastecer aproximadamente 20% da demanda nacional. A empresa responsável, Potássio do Brasil S/A, aponta geração de 1.500 empregos diretos na fase de operação, além de cerca de 3.500 empregos indiretos. Também há promessa de injetar mais de R$ 300 milhões anuais em tributos entre royalties e impostos municipais e estaduais.

O governo do Amazonas defende a proposta como chave para dinamizar a economia interiorana e tornar o Brasil menos vulnerável ao mercado internacional. “Potássio é soberania alimentar. É reduzir o custo da produção agrícola, gerar renda para a Amazônia e aumentar a segurança alimentar do país”, afirma o secretário estadual de Desenvolvimento Econômico, Lucas Campos.

Risco à subsistência

No entanto, para os povos originários da região, o projeto representa uma ameaça à sobrevivência física e cultural. A área do empreendimento é próxima a comunidades tradicionais Mura, que somam aproximadamente 350 famílias em territórios como Lago do Soares, Soares e Urucurituba. Para essas comunidades, a principal fonte de renda e subsistência vem da pesca, agricultura familiar e extrativismo de frutos nativos.

“A mineração ameaça nossa água, nossa alimentação e nossa existência. Não se trata de emprego, se trata de vida. Sem água limpa, sem floresta, não temos como viver aqui”, denuncia a cacica Ana Maria Mura.

Estudos independentes, como o laudo do Instituto Socioambiental (ISA) e da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), indicam que o projeto prevê a captação de mais de 3 milhões de metros cúbicos de água subterrânea por ano, o que pode comprometer o equilíbrio dos igarapés que alimentam as comunidades. Além disso, está prevista a abertura de uma estrada vicinal de 42 quilômetros, ligando o empreendimento à BR-319, o que pode intensificar o desmatamento em uma zona de alta sensibilidade ambiental.

Consulta prévia questionada e embate jurídico

O principal impasse jurídico gira em torno da ausência da Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI), prevista pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. A Potássio do Brasil afirma ter realizado reuniões explicativas, mas lideranças Mura acusam que não houve consulta formal, tampouco respeito ao protocolo próprio das comunidades.

“O que fizeram foi propaganda do projeto, não consulta. Consulta tem regras, é para ouvir o povo de verdade. Não foi isso que aconteceu”, denuncia a cacica Ana Maria.

O Ministério Público Federal já recomendou a suspensão do licenciamento até que seja realizada a consulta prévia nos moldes legais. A Procuradora da República, Juliana Moura, foi enfática: “Sem consulta válida, qualquer licença será nula. O direito dos povos indígenas não é um detalhe do processo, é um pilar constitucional”.

Desafios

Especialistas em políticas públicas apontam que o caso de Autazes representa o desafio clássico da região amazônica: como avançar no desenvolvimento econômico sem reproduzir modelos predatórios do passado. Segundo a professora Rosa Rocha, coordenadora do Observatório Amazônico da Ufam, “O problema não é explorar ou não explorar recursos naturais, é decidir sob que condições essa exploração ocorre, quem é ouvido no processo e como os impactos são minimizados.”

Ela lembra que projetos estruturantes precisam de governança diferenciada na Amazônia: “Faltam mecanismos de compensação efetiva, transparência total no licenciamento e, sobretudo, respeito aos protocolos próprios dos povos indígenas. Sem isso, o ciclo de violações se repete.”

O Valor Amazônico seguirá acompanhando o tema, reforçando o compromisso de informar com equilíbrio e responsabilidade sobre temas fundamentais para o futuro da região: o direito ao desenvolvimento, a proteção ambiental e a voz dos povos que são verdadeiros guardiões da floresta.

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