Pavimentação da BR-319 é retomada com acordo político e compromisso socioambiental
Projeto busca reativar logística entre Manaus e Porto Velho, mas especialistas alertam para riscos de desmatamento e pressão sobre áreas protegidas
Manaus vive mais um capítulo da longa e controversa história da BR-319, a estrada que conecta a capital do Amazonas a Porto Velho (RO) e ao restante do país. Após anos de paralisação e polêmicas, um novo acordo firmado entre o Ministério dos Transportes e o Ministério do Meio Ambiente em julho de 2025 promete viabilizar a pavimentação do chamado “Trecho do Meio”, uma extensão crítica de 405 quilômetros que atravessa um dos territórios mais sensíveis da Amazônia.
O diferencial, segundo os órgãos envolvidos, é a inclusão inédita de salvaguardas socioambientais, criando uma promessa de desenvolvimento sustentável onde no passado se desenharam cenários de devastação. O projeto é vendido como exemplo nacional de equilíbrio entre logística, proteção ambiental e inclusão social, mas divide opiniões.

A rodovia da discórdia
A BR-319 foi inaugurada nos anos 1970 durante o auge da política de integração da Amazônia ao restante do Brasil, mas há décadas enfrenta problemas estruturais, principalmente no trecho entre o km 250 e o km 656, região com baixa densidade populacional, mas de alta importância ambiental. São mais de 300 mil km² de área de influência, abrangendo 9 municípios, 49 terras indígenas, 49 unidades de conservação e mais de 320 mil habitantes.
Do ponto de vista econômico, a pavimentação da BR-319 é defendida como estratégica para a integração da Amazônia com o restante do país, facilitando o transporte de produtos da Zona Franca de Manaus (ZFM), do setor agropecuário e da bioeconomia regional. Projeções indicam que a reativação da estrada poderá reduzir em até 50% os custos logísticos da capital, além de encurtar o caminho para exportação via Arco Norte.

A promessa de uma estrada “verde”
O acordo político estabelece algumas diretrizes consideradas inovadoras, como por exemplo, a criação de “bolsões verdes”: zonas de amortecimento ao longo da estrada com proteção reforçada; monitoramento de fauna: medidas obrigatórias para reduzir o impacto sobre a biodiversidade local; combate à grilagem: fortalecimento da fiscalização para evitar ocupações irregulares; licenciamento ambiental rigoroso, com fiscalização de órgãos como o IBAMA; consulta prévia a comunidades indígenas e tradicionais; e fomento ao agroextrativismo, promovendo alternativas econômicas sustentáveis ao longo da estrada.
A expectativa do governo federal é criar um modelo pioneiro de infraestrutura na Amazônia, capaz de equilibrar crescimento econômico, segurança jurídica e proteção dos ecossistemas.

Riscos que a história não deixa esquecer
Por outro lado, especialistas em meio ambiente fazem um alerta: o asfaltamento de rodovias na Amazônia tem sido historicamente vetor de desmatamento, grilagem e conflitos fundiários. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) mostram que estradas não pavimentadas, quando asfaltadas, elevam exponencialmente os índices de desmatamento em áreas vizinhas — fenômeno já verificado na BR-163 (Santarém–Cuiabá) e na Transamazônica (BR-230).
“Não basta anunciar salvaguardas. Sem fiscalização contínua e recursos assegurados, o asfaltamento corre o risco de abrir mais uma frente de destruição”, adverte o pesquisador ambiental André Miranda, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Organizações como o Observatório BR-319 e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) alertam que os riscos aumentam pela dificuldade histórica do Estado em manter ações permanentes de controle e pela ausência de presença estatal efetiva ao longo da rodovia.
Integração ou nova fronteira de degradação?
A pavimentação da BR-319 está longe de ser uma decisão simples. De um lado, há expectativas legítimas de redução do isolamento logístico de Manaus, com geração de oportunidades econômicas para comunidades que hoje vivem em situação de abandono. De outro, existe um passado de promessas não cumpridas e ocupação desordenada, que ameaça repetir padrões de destruição já conhecidos em outras regiões da Amazônia.
O desafio é transformar o acordo político em política pública sólida, com execução contínua, financiamento garantido e presença estatal após a obra — o que historicamente não tem ocorrido na região.

Oportunidade histórica ou repetição de erros?
O caso da BR-319 coloca o Amazonas diante de uma encruzilhada decisiva: integrar a capital ao restante do Brasil pode significar dinamismo econômico e fortalecimento da bioeconomia, mas também carrega o risco real de se tornar a próxima fronteira de degradação da floresta.
Para o portal Valor Amazônia, a pavimentação da BR-319 deve ser acompanhada de transparência absoluta, controle social efetivo e monitoramento ambiental constante. Sem isso, qualquer promessa de “estrada verde” corre o risco de ser apenas discurso para justificar velhas práticas.
Nos próximos meses, a tramitação das licenças ambientais e o detalhamento do cronograma serão o verdadeiro termômetro sobre o futuro da BR-319. O que está em jogo não é apenas uma estrada: é o modelo de desenvolvimento que o Brasil quer adotar para a Amazônia no século XXI.
Fotos: EBC