Festival reafirma força da cultura amazônica, mas levanta reflexões sobre justiça e sustentabilidade
Durante três noites de encantamento, artistas, estudiosos e lideranças indígenas destacam o papel político e social do festival, que ainda convive com contradições nos bastidores
O Bumbódromo voltou a pulsar com a força dos tambores, das toadas e das cores intensas que fazem do Festival Folclórico de Parintins uma das maiores manifestações culturais do Brasil. Entre os dias 27 e 29 de junho, Caprichoso e Garantido levaram ao centro da arena mais que uma disputa: apresentaram mensagens profundas de resistência, pertencimento e esperança. Mas, entre os gritos da torcida e a beleza cênica das alegorias, intelectuais, artistas e lideranças sociais fizeram ecoar um chamado: é preciso olhar além do espetáculo.
Com enredos que exaltaram os povos da floresta, os direitos dos invisíveis e a potência da ancestralidade, os bois trouxeram à arena o grito abafado de muitos: os indígenas, os ribeirinhos, os trabalhadores informais e as crianças sem acesso pleno a direitos fundamentais.
A antropóloga Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, em seus estudos, descreve o festival como “ritual e brincadeira” — um espaço de rivalidade ritualizada entre Garantido e Caprichoso que articula afeto e disputa, afirmando a cultura amazônica como dinâmica, dramática e performativa. Para ela, embora o festival cumpra um papel essencial no fortalecimento da identidade amazônica, ainda há muito a ser feito no campo da valorização real dos saberes tradicionais.

“Celebrar a ancestralidade é importante, mas é preciso que os povos originários tenham mais que representatividade estética. Precisam de protagonismo concreto e políticas públicas contínuas”, aponta.
O sociólogo e comunicólogo Wilson de Souza Nogueira, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), ressalta a ambivalência do festival como “manifestação popular que se articula com todos os movimentos da sociedade — até mesmo com a mídia. Essa articulação, no entanto, sempre é muito tensa”.
Ele destaca que, embora o evento gere impacto econômico e autoestima — com recorde de visitantes e R$ 26 milhões em patrocínios — ainda convive com disparidades estruturais em Parintins, como saneamento precário e escassez de investimentos nos bairros.

“A arena é simbólica, mas o impacto precisa alcançar a cidade real. A cultura popular não pode ser apenas enfeite — ela é luta, e deve estar no centro do desenvolvimento com justiça”, afirma o sociólogo amazonense, um dos estudiosos mais respeitados da cultura parintinense.
Este ano, tanto Caprichoso quanto Garantido apostaram em narrativas que reforçam a urgência da proteção à floresta e aos seus povos. O boi azul apresentou o tema “Cultura – o Triunfo do Povo”, enquanto o boi encarnado entoou “Por Toda a Vida na Terra”, evocando mensagens de reconexão, justiça ambiental e espiritualidade ancestral.
Contudo, especialistas apontam contradições preocupantes nos bastidores do festival. O patrocínio de grandes empreendimentos, como o da empresa Eneva — envolvida na instalação de termelétricas em áreas sensíveis da Amazônia — gerou críticas de organizações indígenas. Em nota pública, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) classificou o apoio como “paradoxo simbólico”: exaltar culturas indígenas no palco enquanto financia obras que colocam em risco seus territórios.
Ainda assim, a força do festival segue inegável. Com impacto direto na economia local, geração de empregos, inclusão social e turismo, Parintins se transforma em vitrine do orgulho amazônico para o mundo. Iniciativas como a campanha “Infância Garantida, Futuro Caprichado”, do Tribunal Regional do Trabalho, e a arrecadação de mais de 70 mil itens de alimentos para instituições da ilha mostram que o evento pode — e deve — caminhar junto com a cidadania.
Ao fim das três noites, fica a certeza: o Festival de Parintins é um espetáculo do povo. E como todo ato popular verdadeiro, carrega em si o poder de transformar — não só a arena, mas a cidade e toda a região. Para isso, é preciso que o encantamento venha acompanhado de consciência, respeito e justiça.
Em síntese, Parintins reafirmou seu valor como expressão pulsátil da cultura amazônica — dramaticamente viva, identitária e potente. Mas a crítica qualificada dos sábios do conhecimento amazônico lembra: sua grandeza só se completa quando a beleza da arena se transforma em justiça social, protagonismo ético e respeito real às cosmologias que inspiram essa festa.
Fotos: Portal Coitote e Instagram