Filhos separados dos pais com hanseníase buscam reparação histórica
Mesmo após a descoberta da cura, milhares de crianças foram afastadas de suas famílias pelo Estado
Por décadas, a segregação de pacientes com hanseníase no Brasil resultou em uma ferida social profunda: a separação compulsória de pais e filhos, prática que perdurou mesmo após a descoberta da cura da doença. Agora adultos, esses filhos lutam por reparação, reivindicando o direito à pensão estabelecida em lei sancionada em 2023.
O drama vivido por essas famílias é ilustrado na história de Rita de Cássia Barbosa, que, em 1974, deu à luz sua filha Giovana e teve o bebê retirado de seus braços logo após o parto. Diagnosticada com hanseníase durante a gravidez, foi internada no Hospital Curupaiti, no Rio de Janeiro, um dos maiores hospitais-colônia do país. Sem poder ver ou amamentar a filha, Rita passou seis anos até reencontrá-la, num ato de desespero em que se disfarçou para conseguir entrar no educandário onde a menina havia sido levada.
“O governo foi covarde com todos nós, porque já existia tratamento, e mesmo assim nos isolaram. Nós não precisávamos ficar separados dos nossos filhos, mas a sociedade não nos aceitava”, relembra, indignada.

A segregação imposta pelo Estado
A hanseníase, antes chamada de lepra, sempre carregou um forte estigma social. Até meados dos anos 1980, o Brasil mantinha uma política de isolamento compulsório para pacientes diagnosticados, internando-os em hospitais-colônias sem qualquer previsão de alta. Durante esse período, as crianças nascidas nessas instituições eram imediatamente separadas dos pais e enviadas a educandários, onde muitas sofreram abusos físicos e psicológicos.
Mesmo após o surgimento da poliquimioterapia, tratamento que elimina a transmissibilidade da doença logo nos primeiros dias, o Estado manteve a segregação. Estima-se que cerca de 20 mil crianças tenham sido afastadas de suas famílias.
“Muitos de nós fomos privados de amor, crescemos sem nossas raízes e passamos a vida tentando reconstruir essa história”, afirma Roberto dos Santos de Jesus, um dos filhos separados.

Traumas e luta por justiça
Nos educandários, muitas dessas crianças enfrentaram maus-tratos severos. Marly Silva, separada da mãe ainda bebê, relata que, aos cinco anos, já era obrigada a cuidar de outras 60 crianças menores.
“Se não desse conta do serviço, apanhava. E quando vinham as ‘caravanas’ de visitantes, eles escolhiam crianças para levar, sem autorização dos pais”, conta, relembrando a dor de ver colegas sendo levados sem retorno.
Outros, como Roberto, sofrem até hoje com gatilhos emocionais e traumas. “Outro dia entrei num tobogã e comecei a me sentir sufocado. Lembrei do tempo em que ficava trancado no escuro como castigo no educandário”, relata.
Muitos filhos separados cresceram sem documentação oficial ou foram registrados como filhos de avós, tios ou desconhecidos, o que dificulta sua busca por reparação. Giovana, filha de Rita, foi registrada como filha dos avós maternos, e Roberto ainda tenta na Justiça o direito de adotar o sobrenome da mãe biológica.

Reconhecimento do Estado e o direito à pensão
A luta dessas famílias começou a avançar nos últimos anos. Em 2007, o Brasil reconheceu a violação cometida contra os pacientes internados à força e passou a conceder pensão vitalícia para ex-internos das colônias. Desde então, cerca de 8,7 mil pessoas receberam o benefício.
A batalha seguinte foi pelo reconhecimento dos filhos separados, que conquistaram o direito à pensão apenas em 2023, com a sanção da Lei 14.659, regulamentada no final do ano passado. Atualmente, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania recebe os pedidos e analisa os processos para iniciar os pagamentos.
O Movimento de Reintegração dos Atingidos pela Hanseníase (Morhan) estima que mais de 5 mil pedidos já foram enviados e que milhares de processos devem chegar à comissão interministerial nas próximas semanas. A previsão é que os primeiros pagamentos da pensão, no valor de um salário mínimo e meio, sejam liberados ainda este ano.
“Muitos filhos separados já morreram sem receber nada. Precisamos garantir que essa reparação chegue logo aos que ainda esperam”, destaca Artur Custódio, integrante do Morhan.
Memória e justiça social
A história da hanseníase no Brasil carrega marcas de um passado de segregação e preconceito que ainda afeta milhares de pessoas. Para os filhos separados, a busca pela pensão não se resume ao dinheiro, mas ao reconhecimento oficial da injustiça que viveram.
“A dor da separação nunca vai desaparecer, mas saber que nossa história foi reconhecida já é uma forma de justiça”, conclui Rita de Cássia, que hoje se tornou uma liderança dentro da comunidade do Curupaiti, ajudando outras famílias a reunirem sua documentação para garantir o direito à reparação.
Informações e fotos: Agência Brasil